O raiar do sol iluminava a pequena estrada sinuosa que insistia em adentrar cada vez mais a montanha. Era um caminho traiçoeiro, antigo e mal cuidado. Qualquer homem são saberia melhor que trilhar aquele caminho, John Vallar, no entanto, não era nenhum homem são. Ignorando os pensamentos dos homens sãos, a carroça branca seguia irrefreável em seu propósito.
A bela mescla de árvores gentilmente pinceladas pelo alvo da neve se fechava cada vez mais, sombreando o caminho. Para muitos aquela paisagem representaria um santuário imaculado de paz e comunhão com a natureza, não fosse a minúscula estrada coberta de neve poderia se dizer que o local permanecera intocado por séculos. Infelizmente o preço a se pagar por tamanha beleza era uma via praticamente inavegável e extremamente escorregadia.
Isso poderia ser um problema se não fosse um simples fato: John não dava a mínima. Não era o tipo de homem que se deixaria derrotar por uma chuvinha que decidiu cair num lugar frio. Além disso o caminho mais seguro envolveria um desvio enorme que o deixaria às portas da Crisálida, o que também não era nenhuma vantagem. Sua carga dessa vez não era do tipo que se consegue esgueirar pela fronteira, era algo infinitamente mais perigoso e consequentemente, infinitamente mais valioso.
Ouvira boatos, não se lembrava de quem, que o exército imperial pagaria fortunas por armas daquele tipo e sua surpresa não poderia ter sido maior ao encontrar uma, bem diante de seus olhos. Não sabia exatamente como chegara àquela situação mas o pouco que parecia fazer sentido o levava a concluir que tinha sido obra do destino.
Já havia saído faziam seis noites, era o que contara, em busca de lenha e caça. Uma caçada proveitosa, provavelmente seria o suficiente para se manter pelos próximos dias, ou ao menos até a próxima nevasca. A vida com certeza não era fácil, menos ainda para um refugiado vivendo na capital. Teria sorte se conseguisse se manter ali por mais um ou dois meses, era tudo que precisava, e então poderia sumir dali.
Envolto em pensamentos e extremamente ansioso mal se deu conta do caminho que estava tomando até que se encontrou ali, em meio às ruínas. Algo sobre aquele lugar trazia calafrios à sua espinha, como se centenas de fantasmas constantemente esbarassem com ele sem nem ao menos pedirem desculpas. Estava pronto para sair dali o quanto antes e o teria feito não fosse o estranho brilho fantasmagórico que parecia emanar de uma pilha de neve.
John não era nenhum estudioso, em verdade nem sabia ler, mas qualquer idiota saberia que aquele brilho no meio da neve era especial. Era um tremular estranhamente atrativo, como se chamasse seu nome e o convidasse a mergulhar numa pilha de neve. Se lembrou naquele exato momento do porquê odiava magia. Não fazia o menor sentido.
E sem nem perceber lá estava ele, escavando a pilha de neve com as próprias mãos. Não fosse ele quem é provavelmente teria morrido congelado ali mesmo. “Mas vaso ruim não quebra mesmo.” – Pensou enquanto o fazia. O que encontrou: nada menos que uma belíssima lâmina prateada, certamente um achado. Armas bonitas assim caem bem a oficiais metidos… e podres de ricos. Só tinha um pequeno problema. O pequeno problema chamado: “tem um garoto morto segurando a espada”.
Um ou dois dilemas morais depois e muita neve escavada com as mãos e ele tinha chegado onde estava: Numa carroça cheia de lenha, caça e um moleque desacordado com uma espada brilhante. A parte boa é que aparentemente, de alguma forma, o menino continuava vivo. A parte ruim é que se ele acordasse e perguntasse da espada John teria de inventar uma história que não envolvesse tê-la vendido.
“Bom, acho que é tarde demais pra se arrepender agora.” – Foi sua última conclusão antes de dar de ombros e retomar atenção ao caminho. Pensou minutos depois sobre o fato de constantemente esquecer que está pilotando uma carroça e em como isso acabava o levando a situações inusitadas. Ele achava divertido.
Uma diversão que duraria mais do que o esperado e custaria caro às suas costas, no entanto. Após horas a fio tentando balancear a difícil tarefa de conduzir pela trilha miúda e a tentação de só deixar a mente vagar para bem longe da carroça, John estava exausto. Obviamente seis dias de viagem seriam exaustivos até mesmo para caçadores experientes, mas o tédio que antes tomava conta das andanças solitárias perante a neve agora dava lugar a um sentimento de ansiedade excruciante.
Cuidadoso não era exatamente o adjetivo mais utilizado para o descrever. Nem esperto. Nem cauteloso. E por mais que doesse admitir tão cruamente era preciso ser realista. O caminho que decidira tomar eventualmente o levaria aos muros externos da Crisálida. De forma alguma eram tão vigiados quanto os portões principais, contudo o volume de gatunos e assaltantes na região quase o fazia querer correr o risco de entrar pela porta da frente na maior cara dura. Qualquer deslize e poderia acabar sem carroça, comida, lenha e se bobear até mesmo o garoto desmaiado.
O restante do caminho se encurtou perante suas preocupações, bem fundadas com toda certeza. John não sabia dizer o que mais odiava em ser um refugiado na capital. Morar nos arredores dos muros já não era confortável e com o avanço das incursões o número de refugiados superava o espaço disponível por muito. Como se isso não bastasse ainda era preciso se agarrar às migalhas da gente de dentro para sobreviver. Os dias e noites que passara em claro para coletar tudo aquilo mal cobririam os custos de se manter alimentado e sob um teto. John odiava aquilo tudo, realmente odiava. E odiava acima de tudo o motivo de estar ali.
A vegetação densa finalmente começava a se dissipar ao passo que a trilha tímida se tornava mais robusta e larga. Ao longe já era possível ver os enormes muros de mármore brilhante que circundavam a Crisálida. Por mais que já tivesse visto centenas de vezes a forma como o pôr-do-sol fazia brilhar os ladrilhos da construção sempre irritava seus olhos. Era lindo e tudo mais, mas inevitavelmente irritante. Mais algumas horas e poderia desfrutar do conforto do lar. “Só rindo pra não chorar” – Cantarolava desafinado para si mesmo.