Era um fim de tarde sangrento. A medida que o tempo passava, cada vez mais ouviam-se os gritos, contorcidos e desesperados vindos do lado de fora da casa, homens às armas. O menino, assustado com a situação, optou por trancar-se em seu quarto. Sua mãe havia morrido há apenas três dias e mal tivera tempo de digerir o ocorrido. De certa forma, ainda estava sentindo sua presença, a presença tenra e acolhedora que o confortava e aquecia mesmo em meio ao caos. Essa mesma presença era tudo o que podia lhe aquecer do frio. Seria arriscado demais se aventurar para fora do quarto em busca de um cobertor.
Uma guerra que antes lhe parecia tão distante e irreal por fim irrompera, consumindo seu pequeno e frágil mundinho como um fósforo recém acendido. Tudo o que conhecia e que tivera visto até ali nunca mais seria o mesmo. Ele tinha certeza e no fundo rezava para que ao menos, mesmo que pouco, o mundo resistisse, pois assim ele encontraria forças para fazer o mesmo.
Seu pai, um homem simples e justo, porém infinitamente atencioso e compreensivo, de maneira alguma era um soldado. Ainda sim agora estava do lado de fora. Todos aqueles que pudessem lutar assim o fariam, foi o que o conselho decidiu e o que todos os cidadãos aceitaram sem pestanejar. Em um segundo momento refletiu sobre essa decisão tão acertada de seus companheiros. Todos aqueles que moravam no pequeno vilarejo não eram mais que pessoas simples e trabalhadoras vivendo da terra. Mesmo assim, não houve um cidadão hesitante em defender aquela tranquila paz que todos se esforçaram tanto para cultivar.
Quando pequeno sua mãe lhe dissera que antes de nascer, aquela terra era considerada infértil, amaldiçoada. Eram dias muito difíceis onde a colheita era escassa e o inverno ceifava vidas sem piedade. Desde aqueles dias, ninguém nunca havia reclamado ou desistido de estar ali. Para seus moradores, aquele amontoado de terra escura e difícil de manusear era um tesouro que devia ser guardado com o coração. Era um lugar que podiam chamar de lar.
Uma verdade começava a se desenhar na mente do jovem. Que os cidadãos não eram mais que simples agricultores, mas também não eram menos. E a mesma força que conquista os céus ou que derruba um reino era a força que seus companheiros, amigos e família estavam demonstrando naquele momento. Eles sim eram os verdadeiros heróis.
Em frente a uma demonstração tão legitima e pura de heroísmo, como poderia o garoto se manter inerte? Como poderia choramingar encolhido em um quarto quando vários dos seus sangravam em batalha para protege-lo? A resposta era clara agora: ele não poderia. Reuniu toda a coragem que pudera encontrar, por mais dura que fosse a caminhada e por mais pesados que fossem seus passos, algo o mantinha de pé e em frente. Essa sensação não lhe era familiar, era como avançar contra uma onda gigante com um sorriso no rosto. Como banhar-se em uma tempestade de raios sem sentir medo ou remorso.
Seus passos, antes lentos e incertos, aumentavam seu ritmo conforme esse sentimento lhe preenchia o peito. Destrancou a porta prontamente. Sua última caminhada, banhada pelos poucos raios de sol poente pareciam pintar o chão com um vermelho escarlate sangrento, o licor dos heróis. Esse brilho sanguinário reluzia no fio de uma lâmina. A espada de sua mãe. Estivera ali, pendendo sob a lareira desde a última vez que a mulher voltara de uma patrulha. A lâmina que havia acompanhado a chefe da guarda da cidade por mais de uma década parecia emanar uma aura sobrenatural.
Ela o chamava, tinha certeza, como uma dançarina a procura de um par. O convite não poderia ter vindo em melhor hora. Ao segurar seu cabo e sentir o equilíbrio da lâmina o garoto pode ter certeza que aquela arma carregava o espírito de sua mãe. Uma breve lágrima escorreu quase que sem querer, de forma que não soube distinguir se seria um sinal de tristeza ou felicidade. Estava pronto para se tornar um herói.
O que se sucedeu ocorreu em breves instantes, no caminho em direção à porta. Um som metálico estridente, um urro enfurecido e um grunhido sobre-humano. Por fim, houve a luz. Um clarão tão brilhante quanto ensurdecedor inundou os olhos do garoto, lançando-o para longe contra a parede. E assim, o mundo pelo qual estava tão disposto a lutar se despediu com um breve aceno e um sorriso triste de uma despedida que se sabe ser definitiva.
E então a escuridão.