Noites Claras e Mentes Turvas

Capítulo 2

A luz alaranjada do pôr-do-sol parecia escorrer lentamente pelo céu, como pequenos grãos de areia que pouco a pouco derramam sobre uma ampulheta. Era sinal de que logo estaria ante a presença das estrelas. Os fugidos raios de luz que ainda arriscavam avançar contra as paredes de mármore brilhante as faziam reluzir de forma que parecessem grandes jóias prateadas incrustadas com inúmeros cristaizinhos. Ao menos era isso que a imperatriz sempre havia imaginado desde a infância.

A jovem se olhou mais uma vez no espelho, ajeitando seus longos cabelos argênteos em um coque lateral. Lyra já havia participado de inúmeras reuniões do conselho, sempre como espectadora. Dessa vez, no entanto, participaria em posição de comandante. Talvez fosse seu recém adquirido título ou mesmo os próprios membros do conselho que fizessem suas mãos recearem mais do que o normal.

Há poucos meses seria difícil de acreditar que estaria ali, prestes a discutir política e guerra com três dos maiores nomes de todo o império. Não que já não fossem familiares, de forma alguma. Lyra conhecia aqueles homens desde que se entendia por gente, era natural que fosse assim. Era natural a um líder conhecer bem seus conselheiros e isso se fazia ainda mais essencial aos daeliseanos considerando o mecanismo distinto adotado pelo império.

Por certo o título imperial sempre fora concedido de forma hereditária aos descendentes do Primeiro. No entanto, a figura de um imperador representava meramente a decisão final de uma série de deliberações de um conselho interno seleto. Lyra já havia presenciado uma série de reuniões do conselho sob a tutela do antigo imperador Yona. Se lembrava claramente das discussões, normalmente pacíficas e harmoniosas.

A peculiaridade que tornava essa concordância tão surpreendente para a jovem era que, por mais que a autoridade imperial detivesse o poder moderador da discussão, cada um dos membros do conselho sustentava individualmente um pilar da sociedade.Lembrava-se de uma explicação simples que seu pai havia lhe dito na primeira reunião para que nunca mais esquecesse: “A Moore cabe julgar, a Oreste cabe administrar e a Otto cabe legislar”. Em raras ocasiões em que houvesse discordância unânime do conselho quanto à palavra do imperador, a palavra do conselho venceria. Mesmo assim, durante toda regência de seu pai Lyra nunca havia presenciado algo do tipo.

E agora tudo com o que precisava se preocupar iria vir de encontro direto a ela. Anos de preparo podem te dar conhecimento e etiqueta, mas nunca sabedoria ou experiência. Se ao menos Yona estivesse alí… Mas já era tarde. Tudo que poderia fazer seria lembrar-se do que lhe foi ensinado e tentar não parecer idiota na frente de três velhos esquisitos e super influentes. Tentaria com todas as forças… Mesmo que sua mente insistisse em relembrar o quanto seria improvável.

Ajeitou-se uma última vez, conferindo o vestido recém costurado, um presente que recebera de Amélia no dia de sua coroação. Era belíssimo, feito de um cetim branco que complementava o prateado de seu cabelo. Lyra nunca fora a mais preocupada com esse tipo de formalidade, mas havia aprendido a conviver com o requinte que esperam da realeza. Ainda sim não conseguia deixar de pensar quão engraçado era que as peças de roupa brancas combinavam tanto com ela quanto com qualquer outro pedaço de mármore das paredes.

E assim deixou seus aposentos reunindo toda a falsa confiança que havia aprendido a demonstrar. Um último olhar de despedida ao quarto lhe trouxe um pensamento reconfortante. “Bom, não dá pra reunião ser mais desorganizada que isso”.


O ar noturno sempre agradara John. O calor e a luz do sol sempre lhe fizeram bem, obviamente, mas gostava mesmo era do que brilhava quando já estava escuro. Nesses momentos em que a brisa nortenha lhe gelava até os ossos nada era melhor do que sentar ao pé de uma aconchegante fogueira assistindo as chamas dançarem, consumindo a lenha em troca de seu radiar intenso e alaranjado.

Para sua infelicidade, o povo da Crisálida não parecia compartilhar de suas preferências. As enormes muralhas de mármore brilhante que circundavam a cidade principal não brilhavam somente durante o dia. Até mesmo naquele momento, muito depois do sol ter se posto, as imensas paredes ainda reluziam, emitindo um brilho alvo semelhante ao da própria lua. Muitos poderiam achar aquilo lindo e maravilhoso. John, no entanto, achava só mais uma das muitas formas de daeliseanos metidos a besta se sentirem mais especiais do que qualquer um.

Não precisaria se incomodar com aquilo por muito mais tempo, pelo menos, pois logo chegaria aos subúrbios. Nem mesmo a “belíssima” paisagem ou o revigorante ar da noite conseguiam tirar a ansiedade de sua mente. Há aproximadamente uma semana atrás havia deixado naquele lugar algo mais importante para ele do que a própria vida. Algo pelo qual valeria o esforço que fosse, o preço que custasse para ver brilhar. Preço esse que sabia muito bem estar muito distante do que poderia pagar. Até aquele momento.

Puxou as rédeas brevemente, momentos antes de pegar a trilha esburacada de “mármore” que se algum dia brilhou certamente alguém das redondezas já havia decidido roubar e vender.

— Calminha aí, Donzela. Já estamos chegando… — Falou baixinho, acariciando a égua que lhe acompanhara em tantas noites frias como aquela.

Espreguiçou-se em silêncio enquanto se virava para dentro da carroça. Nada de novo alí: lenha, lenha, lenha, caça, um garoto desacordado, espada mágica, lenha. Só o básico. Se nada daquilo lhe trouxe problemas até aquele ponto dificilmente traria agora. Por sorte nenhum dos oficiais com quem cruzou a caminho dos subúrbios sequer se importou em conferir uma carroça tão pequena. Agora era simplesmente questão de chegar até a estalagem. Logo pela manhã decidiria o que fazer com tudo aquilo. A lenha e a caça deveriam dar dinheiro suficiente para se manter mais um mês e o que sobrasse era lucro. O que lhe intrigava de fato era a estranha espada com a qual se deparara mais cedo.

John já havia estabelecido em seus pensamentos durante a viagem algumas coisas. Ela definitivamente era mágica, provavelmente de uma maneira não muito agradável considerando o que sentira mais cedo. Se o menino eventualmente viesse a perguntar por ela, diria que nunca havia visto e finalmente que não aceitaria menos que um mês inteiro de pagamento pela arma. Esse sim seria o lucro do qual precisava.

Conferiu uma última vez o pulso do garoto. Vagaroso e bem fraco, mas ainda presente. John já tinha visto muita gente desmaiar. Gente bêbada, gente que levou mais porrada do que aguentava, até gente doente. Nenhum deles parecia tão desmaiado quanto a bela adormecida deitada na carroça. Só esperava que ele viesse a acordar… Núbia certamente se irritaria muito se trouxesse um garoto morto para sua estalagem.

— Vamos, garota. É hora de voltar pra casa— Suspirou num tom cansado virando se novamente para o caminho de mármore adulterado.

Em questão de minutos a trilhazinha esburacada os levou ao lugar que já conheciam bem. Os subúrbios da Crisálida. Era fácil saber que já haviam chegado pois naquele lugar em específico, aos pés da grande muralha, o mármore brilhante recusava-se a brilhar. John nunca se perguntara porque mas tinha certeza que de alguma forma até mesmo a muralha em si não se cansava de lembrar a todos ali: Eram imigrantes, e indesejados. “Eu te odeio tanto quanto você me odeia” pensou sem perceber a cara feia que fazia ao olhar para um pedaço de pedra.

Não só a escuridão do lugar que se remediava apenas por algumas poucas lamparinas colocadas pelos próprios moradores como as pequenas construções, em sua maioria de madeira demonstravam a diferença clara entre viver naquele lugar e viver na Crisálida. Compartilhavam uma muralha, as semelhanças acabavam ali. Fazia tanto tempo que não via a estalagem que John quase tinha esquecido que estivera morando nesse restante de terra há quase um ano

Parou a carroça em frente a um pequeno estábulo, ao lado de uma das raras construções mais robustas da região, finalmente desatando a pobre Donzela. Afagou-a por um instante antes de guiá-la até seu espacinho preferido, ao lado de um monte de feno.

— Você foi ótima hoje. Amanhã vou te trazer uma daquelas cenouras bonitonas que eu sei que você gosta viu!? — Falou animado à sua companheira de viagem.

O nome Donzela não era atoa. John sabia que aquela égua era muito mais requintada e confiável do que a maior parte das “donzelas” que encontrara por ali. Ela também não ia embora, nem cobrava nada e muito menos se chateava quando ele bebia até cair. Companhia perfeita.

Estacionou a pequena carroça se preparando para descarregar o que não poderia passar a noite fora. No caso o menino desacordado e a espada estranha. Começou a puxar o garoto com cuidado com medo de que o acordasse, medo esse que se provou bobo depois de tê-lo puxado de um monte de lenha e colocado em uma pilha de feno sem que obtivesse nenhuma reação aparente.

John prosseguiu com maior cautela. Agora que tinha parado para olhar a tal espada novamente se lembrava muito bem da sensação esquisita que sentira ao encostar nela mais cedo. Nem mesmo seu reluzir fantasmagórico ou seu fio perfeito lhe tiravam da mente o quão estranha de fato era. Pegou-a pelo cabo sem muita vontade. Nada demais. Geladinha talvez, mas surpreendentemente normal. Arriscou golpear o ar algumas vezes de brincadeira. Parecia tão leve quanto o vento.

— Não acha que está um pouco velho demais pra brincar de espadinha…? — Uma voz rouca e aguda cortou a escuridão.

O susto provocado pelo surgimento inesperado de uma figura conhecida em um momento de descontração infantil foi o suficiente para que John derrubasse a espada no chão fazendo um barulho metálico desagradável.

—Núbia!? Eu… Eu só tava vendo se funcionava ainda. E-eu vou vender! — Respondeu completamente envergonhado e ainda assustado pela aparição súbita.

— Não tem nada de errado em se divertir um pouco, garoto… Só tome cuidado girando essa coisa de um lado para o outro… É brilhante demais. Alguém pode crescer o olho— A senhora respondeu calmamente com um pequeno sorriso enrugado.

—Agora quanto a ele… — Mudou de expressão, com um rosto preocupado enquanto apontava para o garoto desmaiado no feno.

— Eu o encontrei na neve. Estava desmaiado mas ainda está vivo, tenho certeza. Não sabia o que fazer com ele, mas não poderia deixar ele lá sozinho… — John respondeu em tom sério, se recompondo do susto que havia tomado.

— Olha, Núbia… Eu sei que estamos passando por um momento difícil mas eu juntei bastante coisa dessa vez. Deve dar pra um mês inteiro. Deixe ele ficar pelo menos até que acorde e eu prometo que sustentarei o custo. — Completou com a maior sinceridade que um mentiroso poderia imprimir. De certa forma aquele garoto provavelmente não era muito diferente dele. Alguém que não tem pra onde voltar.

— Ora Vallar… Deixe de bobagem. Alguma vez já me viu deixar alguém assim na rua? Pensei que já me conhecia melhor que isso… O garoto fica, e você só precisa se preocupar em fazer ele acordar. Não sou agiota, não estou lhe fazendo nenhum favor — A senhorinha respondeu decidida.

Em momentos assim John se lembrara. Certamente não havia alguém mais rico em espírito, nos subúrbios ou na Crisálida do que Núbia Jaspers.

—Vamos, te ajudo a levar isso pra dentro. Já está ficando frio aqui fora — Núbia finalizou, levantando com cuidado o garoto da pilha de feno enquanto o levava em direção a estalagem. Certamente não teria sido a primeira vez que o fizera, e enquanto vivesse queria mais do que tudo continuar fazendo.