Luz. Um clarão ofuscante, na verdade. Não como a luz do sol que aquece e afaga, fazendo tanto o solo como os indivíduos germinarem, se desenvolverem. Também não como a luz tenra e acolhedora de uma fogueira que espanta os medos e leva embora a frigidez da brisa noturna. Uma luz forte. Tão forte quanto agressiva tomava a vista do jovem por todos os lados de forma que nada era possível enxergar que não sua presença, imponente e inexorável.
Antes que pudesse se acostumar à claridade excessiva, nada mais veria. E como se a luz antes intensa e definitiva já não fosse mais tão inflexível quanto imaginava, rapidamente foi levada embora, quase como se arrastada para um centro de onde nada poderia escapar. E assim, em poucos instantes, o horizonte escureceu. E nada mais via.
E em meio a escuridão, sozinho, vazio, nada mais sentia. Nem o incômodo trazido pelo clarão e nem a inquietude deixada pelas sombras. Seu corpo não o obedecia, não precisava. Em seu âmago sabia que de onde estava não escaparia nem que tentasse de forma que qualquer intento que fosse seria fútil. Essa sensação duraria apenas mais alguns instantes até que se recordasse de uma verdade: o breu é ardil. Muitos antes e depois dele conheceriam essa verdade: Que ninguém tem medo do escuro. Todos temem o que se acoberta em seu manto.
E o desespero começara a tomar conta tão rápido quanto a luz, ou quanto às trevas, preenchendo sua mente de incerteza e desconcerto. Não via nada, e ao mesmo tempo via muito mais do que queria ver. Paredes que se estreitavam sem aviso, inimigos amontoados observando-o como fosse presa e finalmente os olhos. Olhos fantasmagóricos, frios e mortos. Dezenas, não, centenas de olhos fúnebres o alvejavam julgamentais no escuro. Se antes não se mexia por falta de motivo, agora não o faria por terror. Puro medo que causa paralisia.
E assim foi por um instante, e o instante após esse e após o outro sem nunca parar de sentir. Cada segundo daquela existência amaldiçoada seria voltado a lhe causar o maior desconforto e terror que conseguisse suportar, sem nunca cessar. Até que todas as verdades que aprendera até ali tornassem-se trevas. Havia uma, porém, que nunca se permitiria esquecer: O breu é ardil.
Dormir demais pode ser um problema.
O garoto começara a abrir os olhos lentamente como se fosse a primeira vez. Estava certo de que não era, porém não conseguia se lembrar da última ocasião em que o tinha feito. Seria um bom assunto para se refletir visto que o comum é que se saiba ao menos alguns detalhes como: o que fizera de importante durante o dia ou quem sabe os últimos acontecimentos que ficaria remoendo até que o cansaço o nocauteasse em sono profundo.
Em uma segunda análise, no entanto, percebeu que talvez existissem assuntos mais urgentes que demandassem sua atenção imediata tais como: “Que lugar é esse?” ou “Quem são essas pessoas ao meu redor?”. A confusão começava a se tornar desespero ao passo que percebia o quanto nada lhe era familiar. A senhora dos braços fortes e rosto enrugado, a menina pequena que parecia tremer toda vez que ficava de pé e o cara que não parecia tomar um banho há pelo menos uma semana, nenhuma dessas ilustres figuras significavam qualquer outra coisa que não “estranhos” para ele.
Se os problemas parassem por aí estaria no lucro. Infelizmente nem o quarto onde havia repousado desde que se lembrava lhe vinha a mente. Não sabia se lhe pertencia há anos ou se nunca tinha estado ali na vida. Todos esses pequenos desconhecimentos formavam uma espécie de quebra-cabeças invertido, onde pareciam haver cuidado muito bem para que nenhuma peça se encaixasse. Um dispositivo intrigante e essencialmente inútil. Para azar do garoto, esse dispositivo era sua memória.
Normalmente, quando rodeado de incertezas, reafirmar tudo aquilo que se toma como verdade de modo a tornar o confuso minimamente suportável é a melhor saída. Para o garoto esses pensamentos eram escassos, mas certamente havia uma ou outra coisa que ainda fazia sentido. Ainda podia respirar, sentia o calor de um cobertor que repousava por cima da metade de seu corpo. Apesar de ser possível ter batido a cabeça e acabado nessa situação, não sentia dor alguma, portanto uma contusão parecia pouco provável.
Enquanto obscurecido por uma nuvem de pensamentos tão densa que acabaria encharcando a cama, sua linha de raciocínio tão complicada e ofegante em busca da verdade foi quebrada em pedaços por um suéter tricotado a mão. Em uma fração de segundo sem que fosse detectado por seus sentidos um projétil macio e felpudo foi atirado em sua direção, causando o fim prematuro de seus devaneios.
A próxima coisa que ouviu foi a menção de um grito tão fraco que poderia muito bem ter sido falado. A menina que normalmente repousava na cama do outro lado do quarto acabara de soltar um “sonoro” aviso de que algo estava errado. Seu semblante trêmulo mal se sustentava de pé, em resposta ao que parecia uma aparição fantasmagórica.
— Quem é você, garoto!?— Esbravejou num tom nada convincente. Era óbvio que estava tão assustada e confusa por sua presença quanto ele próprio por estar ali.
Abriu a boca no mesmo instante como quem tem uma resposta mas as palavras travaram no meio do caminho porque sinceramente ele mesmo não sabia como se justificar. Para sua sorte, antes que precisasse bolar alguma resposta a porta de madeira que dava acesso ao quarto se abriu em um rangido alto. A senhora que se lembrava ter visto em algum momento mais cedo surgiu como um anjo misericordioso eximindo da responsabilidade de se justificar. A mulher se dirigiu ao lado da menina pequena que parecia genuinamente aterrorizada pela visão dele. Reparou naquele momento que não se lembrava de como seu rosto se parecia e temeu por um instante ser simplesmente feio demais.
— Illya, acalme-se. Você estava dormindo quando o trouxemos para cá. — Disse em tom ameno e reconfortante. Não conhecia aquela pessoa mas se tivesse que escolher alguém com base no que se lembrava até aqui não seria difícil.
— Por que o trouxeram pra cá…? O John prometeu que os hóspedes novos só ficariam nos quartos lá de baixo… — A menina respondeu em tom amuado, sentando-se ainda desconfortável. Sua expressão parecia um misto de espanto e preocupação.
— Querida, foi o próprio John quem o trouxe aqui em cima. Seu irmão o encontrou na última viagem e ele estava precisando de ajuda. Por falar nisso, o que o casaco que te dei de aniversário faz ali? — Apontou para o casaco que agora repousava no colo do garoto.
— Ela jogou em mim — As palavras saíram sozinhas da boca do menino e causaram arrependimento instantâneo. Mal havia descoberto se era feio e já havia se tornado um dedo duro.
Núbia o olhou de cima a baixo, analisando-o por completo. Um sorriso se desenhava em seu rosto. A mulher se aproximou de sua cama, pegando o suéter tricotado de seu colo. O olhou por um instante antes de soltar uma breve risada.
— E você nem pra desviar? Me parece que gostou do tecido então. Faço um pra você depois— A senhora proferiu no mesmo tom gentil com quem falara com o homem magro na noite anterior. Algo sobre ela o fazia sentir menos amedrontado e de certa forma protegido.
— Meu nome é Núbia, garoto. Qual o seu? — Perguntou, em tom tranquilo, a pergunta da vez.
— Meu nome…— Pensou por um longo instante tentando buscar a informação no fundo de suas memórias. Fechou os olhos por um momento enquanto massageava as têmporas com as mãos. A sensação de fechar os olhos lhe causava extremo desconforto por alguma razão. Sempre que tentava trazer à tona memórias mais antigas, um zumbido e um clarão lhe viam a mente. E uma voz distante, bem tênue sussurrava.
— Milles. Meu nome é Milles — Conseguiu responder ao custo de uma sensação intensa e persistente de desconexão. Tinha certeza agora de que onde quer que estivesse e por mais amena que a senhora fosse de que ali não era seu lugar.
— Milles? Que nome incomum para alguém da região. — Núbia respondeu aproximando-se mais enquanto examinava seu rosto. — Você não é daqui não né? Não é daeliseano com certeza. Ponta Pedra talvez? — Questionou ainda intrigada investigando seu rosto.
— Senhora… Núbia, eu não me lembro. Não me lembro de mais nada além de estar aqui e do nome que acabei de dizer. Sei que pode parecer estranho mas a primeira coisa de que me lembro é de ser carregado até este quarto ontem a noite. — Milles respondeu, agora voltando-se à sua inquietação inicial.
— Não se lembra de mais nada? — A mulher perguntou agora em tom preocupado. Milles confirmou com a cabeça — Bom… John mencionou que havia o encontrado desmaiado na neve. Talvez você tenha sofrido algum acidente por lá. Você me parece bem novo então duvido que não estivesse com um grupo. Apesar da expansão há ainda algumas poucas comunidades remanescentes que o império não se propôs a conquistar. — Explicou tentando confortar.
— Mas Núbia, se o John achou ele onde normalmente caça não tem como ter ninguém vivendo ali — Illya respondeu de sua cama, agora mais calma mas ainda com voz fraca — Ele sempre vai à mesma região para caçar e cortar lenha desde que eu me entendo por gente — A menina disse pressionando seus braços em desconforto. — É perto de casa. Não sobrou ninguém por ali.
— Oh… eu não sabia — Núbia respondeu visivelmente arrependida de ter mencionado a possibilidade. Um clima desagradável, quase fúnebre, se formou com aquelas palavras. Para Núbia significava que tinha tocado num assunto delicado, para Illya significava lembrar daquilo que mais tentava esquecer, e para Milles significava que talvez ninguém o estivesse esperando.
Os três permaneceram em silêncio por bons minutos até serem surpreendidos pelo velho ranger da porta de madeira. Um homem alto, pálido e segurando o que parecia uma sacola bem pesada de moedas invadira a reunião.
— Vocês não vão acreditar quem conseguiu o suficiente pra comprar uma casa num rolo com um subtenente engomadinho! — John Vallar exclamou empolgado enquanto pendurava seu casaco surrado. Seu semblante normalmente exaurido seja pelo trabalho ou pela ressaca estava especialmente radiante naquela manhã.
Milles imediatamente soube que se as coisas estavam estranhas até agora era impossível que aquele homem fosse torná-las mais claras. Mesmo que não se lembrasse de nada tinha a sensação de que aquela era a má companhia da qual os mais velhos sempre tentam avisar. Mais ainda, algo em sua fala o deixara com uma pulga atrás da orelha. Afinal de contas, casas normalmente são bem caras.